Converso com André Setaro alguns dias antes de fazer a palestra na Sala Walter da Silveira e ele me diz que se começasse a escrever crítica de cinema hoje não teria condições de manter uma coluna diária, como fez durante décadas, na Tribuna da Bahia, impedido pela falta de qualidade dos filmes.
“O cinema, mesmo o mais comercial, tinha outra envergadura, um nível de produção muito melhor. Atualmente a indústria cultural de Hollywood está entregue a executivos de multinacionais que nada entendem de cinema”, escreve Setaro em um dos artigos publicados no volume 3 de Escritos Sobre Cinema – Trilogia de Um Tempo Crítico.
As três publicações, lançadas em 2010, reúnem crônicas, comentários e críticas, mas há ali apenas 10% do que já escreveu. Não estão contemplados muito do que publicou no Suplemento Cultural de A TARDE, na Gazeta Mercantil (Gazeta da Bahia) e os dez primeiros anos da Tribuna da Bahia, entre outras publicações, afirma o crítico de cinema.
André Olivieri Setaro nasceu no Rio de Janeiro e muito cedo veio morar em Salvador. Começou a escrever sobre cinema na Tribuna da Bahia, nos anos 1970. Ele é o elo entre os que surgiram nos anos 70 e a geração de Walter da Silveira.
O Curso Livre de Cinema, implantado em 1968 pela Universidade Federal da Bahia, atendendo a um pedido de Walter da Silveira, além da frequência às sessões do Clube de Cinema da Bahia, foi fundamental para a formação do cinéfilo André Setaro e sua transformação em crítico de cinema.
“Guido Araújo, que tinha chegado há pouco da Tchecoslováquia, onde passou mais de dez anos, foi convidado por Walter da Silveira para repartir, com ele, as atividades curriculares. E ficou assim estabelecido: às terças, Walter ministrava História e Estética do Cinema, e às quintas, Guido, com Teoria e Prática do Cinema”, escreve André Setaro em sua coluna publicada às terças-feiras no site Terra Magazine.
“O Curso Livre de Cinema foi um acontecimento histórico, porque nunca mais se repetiu, ainda que passados já 43 anos de sua implantação. É verdade que Guido Araújo continuou com o curso durante a primeira metade da década de 70, mas sem a dimensão do de 68”, completa Setaro, que escreveu sua primeira coluna na TB em agosto de 1974.
Inicia-se, assim, a trajetória do mais importante crítico cinematográfico da Bahia a partir de então. Com habilidade, competência, destila suas reflexões, no sentido mesmo de contaminar, gota a gota, os leitores com suas ideias sobre o cinema enquanto arte e entretenimento, apresentando ao público um catálogo de referências adquiridas durante anos de freqüência diária às salas de cinema e ao clube de Walter da Silveira.
Em 1974, a crítica de cinema na Bahia está acanhada. Escrevendo diariamente sobre cinema temos apenas Setaro e Berbert de Castro – este já havia declarado que não se considerava um crítico. É com André Setaro que vamos aprender – inicialmente lendo sua coluna da Tribuna e depois, a partir de 1979, assistindo às suas aulas de Cinema I e Cinema II (aqueles que estudaram jornalismo na Escola de Biblioteconomia e Comunicação da Ufba, hoje Facom) – história e linguagem do cinema.
O que representou David Griffith para o cinema, com filmes como O Nascimento de Uma Nação e Intolerância. O significado do expressionismo alemão de Robert Wiene, F. W. Murnau e Fritz Lang. A escola russa de Eisenstein e sua teoria da montagem dialética, de atrações, a importância do drama intimista e romântico hollywoodiano.
O cinema japonês de Mizoguchi, Ozu, Kurosawa, Shindo e tantos outros nomes frequentou a coluna de Setaro diariamente, bem como a revolução do neorrealismo italiano de Roberto Rossellini e Vittorio De Sica, a representatividade do cinema do Leste Europeu, a nouvelle vague francesa de Godard, Truffaut, Chabrol, o sentido da antinarrativa processada por Antonioni, o cinema de gênios como Orson Welles, Visconti, Bergman, Pasolini, dentre inúmeros outros. Uma sistematização e recriação da obra cinematográfica, por meio de críticas, crônicas, comentários e resenhas com sentido raro, faro incomum ao observar o filme e detectar o ato criador.
Além da coluna publicada no Terra Magazine, o critico mantém o Setaro’s Blog, de onde destila sua insatisfação, seu sentimento de mal-estar mesmo em relação ao destino do cinema hoje, com particular ênfase para uma crítica cultural aprisionada na falência do saber cinematográfico, com o declínio da percepção do cinema, do seu status intelectual, do ato criador manifestado na debilidade da maioria da produção cinematográfica atual.
E o cinema baiano não escapa a esse faro do crítico que escreve na revista do VII Seminário Internacional de Cinema – CineFuturo, realizado em julho, sob o título A distonia do crítico: “Quando se trata do filme baiano, tudo se modifica, considerando que o crítico conhece os realizadores da província e, de hábito, um comentário, mesmo que fundamentado e diplomático, é visto como ofensa ou tentativa de denegrir o cineasta”. E conclui: “O crítico do cinema baiano não passa, a rigor, de um distônico”.
Sua pesquisa é muito importante. Acompanhei-a passo a passo. E obrigado pela parte que me toca. Não mereço tanto.
Como você bem observou, há um hiato na crítica baiana entre os anos 70 e os anos 90, predominando, neste período, apenas dois comentaristas: José Augusto, de ‘A Tarde’, e os meus mal escritos na ‘Tribuna da Bahia’. Não se pode esquecer, no entanto, sua estreia em ‘A Tarde’ no suplemento dos domingos dedicado à televisão, que, na minha opinião, foi uma revelação. Havia, na época que entrei para fazer comentários críticos, o titular da coluna. Ninguém podia escrever sobre cinema. Em ‘A Tarde’, naquela época, a mesma coisa. O que difere totalmente dos tempos atuais, quando todo jornalista pensa ser crítico de cinema, assim como todo brasileiro é técnico de futebol. A crítica, no dizer do grande Inácio Araújo, é a arte da paciência. Antes de se ser crítico, há a necessidade de se formar um repertório: ver e rever filmes. Cinema se aprende, segundo José Lino Grunewald, indo ao cinema.Percebo que alguns ‘críticos’ da maldita contemporaneidade não se interessam pelo cinema do pretérito, que é a fonte e a inspiração de tudo.
Comecei, sim, André, escrevendo sobre lançamentos de vídeos e n’A TARDE Cultural, editado por Florisvaldo Mattos, um incentivador. E depois no Caderno 2. A questão da titularidade era uma coisa muito séria. Mas continuei escrevendo, até que o trabalho diário na redação absorveu tudo. Mas o cinema sempre estava na ordem do dia. Sempre vendo, falando de filmes. E programando filmes na Sala Walter da Silveira.
Conheci André quando chegou do Rio em 1954. Daí em diante fizemos uma grande amizade que foi dividida pelo tempo com alguns reencontros marcantes como o período em que fui orientador da sua tese de Mestrado sobre o filme A Grande Feira. Hoje é o dia do seu falecimento e tenho em memória a pequena máquina manual de projeção que o mesmo manipulava com a idade de oito anos. Ele vivia para o cinema e no cinema. Via todos os filmes na semana. Aprendeu a catalogar os filmes com minha madrinha Tia Edith Olivieri Prisco Paraiso hoje ainda viva com 107 anos cinéfila da origem e fazia versos com os nomes dos filmes. As atitudes de André na vida eram enquadradas como cenas. A primeira que me recordo foi no casamento de Inês dos Reis cozinheira de Tia Edith que se casou com todas as pompas em uma família de descendentes de italianos. Uma espécie de despedida de Inês. Onde toda a família sabia que ia perder o seu convívio e a presença e o desfrute das suas deliciosas receitas como a sopa de batata e o peixe ao molho branco. Ela entrou na Igreja com meu padrinho tio Cezar um homenzarrão com 1,85m
A Igreja dos Salesianos cheia e repleta dos Olivieri e Paraiso da vizinhança e dos parentes da noiva de Santiago do Iguape Na festa André com oito anos joga para cima uma empada que gruda no teto e despenca gradativamente dentro dos seios volumosos em decote da sua prima mais velha. Cena cinematográfica dos pastelões visitados por André. Quando era pequeno com 12 anos sabatinava a todo mundo: Você viu Europa de Noite? Ele queria saber algo sobre o filme já que estava proibido ao acesso para a sua idade. Daí em diante a vida dele foi cinema, a realidade era vista por ele de forma projetiva, a linguagem da vida para ele foi a luz do projetor.
Uma perda inestimável, Alberto. Sempre um incentivador. Um dos maiores críticos do país.